Antes pressionadas a ingressar no programa, empresas aéreas agora pedem benesses e prometem passagem a R$ 200 como uma “contrapartida”
O “Voa Brasil” foi prometido para começar em agosto de 2023. Antes da data, porém, adiaram para setembro. O ministro mudou, e a data também.
O que nasceu como um programa com grande apelo popular está se transformando numa verdadeira armadilha para o governo federal. E, hoje, o programa governamental para compra de passagens aéreas a R$ 200 tem chances não desprezíveis de simplesmente ser cancelado, como um voo de um avião repleto de problemas.
Nascido na gestão do ex-ministro de Portos e Aeroportos Márcio França, o programa já nasceu torto e gerou reações negativas — inclusive do chefe dele, o presidente da República.
Dias após o ex-ministro França anunciar o programa em diversas entrevistas — inclusive nesta CNN, Lula disse na abertura da reunião dos 100 primeiros dias do governo que “qualquer genialidade que alguém possa ter é importante que, antes de anunciar, faça uma reunião com a Casa Civil”.
Era a senha de que o Palácio do Planalto havia sido pego de surpresa e estava incomodado com o que ocorrera. Já era tarde.
O “Voa Brasil” já estava na internet e a promessa de voar por R$ 200 circulava como um vírus no WhatsApp dos brasileiros que não pisam em um aeroporto há anos ou sonham em voar pela primeira vez.
O setor aéreo é um dos mais regulados de qualquer economia. A necessidade de regras rígidas e padrões internacionais de segurança de voo geram uma enorme quantidade de leis e normas — e basicamente todas determinadas pelo governo federal.
Por isso, não foi de se estranhar que a reação inicial das empresas aéreas tenha sido tão amigável. Departamos de comunicação divulgaram notas com elogios e interesse das companhias em participar da empreitada.
A avaliação nos bastidores, porém, sempre foi diferente.
A estranheza começava pelo simples fato de que uma parte das passagens já é vendida nesse patamar mágico do “Voa Brasil”. Em 2023, 14,9% de todos os passageiros pagaram até R$ 200. O dado é da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e indica que cerca de 12 milhões de passageiros domésticos pagaram bilhetes até esse valor.
A estranheza crescia no fato de que o setor aéreo tem um dos modelos de precificação mais complexos de toda a economia. Com o uso de algoritmos sofisticados, as aéreas trabalham 24 horas por dia para, basicamente, tentar encher os aviões com o máximo de passageiros pagando o maior preço possível.
Nesse contexto, um programa com regras e preços fixos para públicos específicos parecia algo difícil.
O argumento do ex-ministro era de que o plano é ocupar a ociosidade dos voos domésticos. É verdade, há assentos vazios. O dado mais recente mostra que os aviões voam com cerca de 13% dos lugares desocupados. Parte desses assentos vazios, porém, pode ser considerado “quase intencional”.
É como uma reserva para as aéreas que têm a oportunidade de vender as passagens a passageiros de última hora com preços, obviamente, astronômicos.
Mas o jogo parece que mudou. Diante do interesse público, o programa nunca foi esquecido. E, agora, o queijo e a faca parece que mudaram de mãos.
O setor aéreo — que ainda não se recuperou da crise da pandemia — começa a ver no programa uma maneira de conquistar benesses do governo federal. Para as empresas, vender passagens a R$ 200 pode ser uma “contrapartida” à materialização de uma lista de pedidos.
E a lista é grande.
*Fernando Nakagawa
Repórter econômico desde 2000. Ex-Estadão, Folha de S.Paulo, Valor Econômico e Gazeta Mercantil. Paulistano, mas já morou em Brasília, Londres e Madri