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Mundo vê com ‘surpresa’ instituições funcionando melhor no Brasil que nos EUA, diz diretora de instituto britânico

O mundo tem se surpreendido com o desenrolar do processo judicial contra os réus acusados de tentativa de golpe de Estado após a eleição de 2022 — e com o fato de as instituições brasileiras estarem respondendo melhor à ameaça antidemocrática do que os Estados Unidos (EUA), diz Andreza Aruska de Souza Santos, diretora do Instituto Brasil da universidade King’s College London.

“Existe uma certa surpresa de que esse país que as pessoas não conhecem tão bem tenha instituições fortes e seja quem de fato está conseguindo fazer justiça”, aponta a antropóloga política em entrevista à BBC News Brasil.

Souza Santos destaca que, principalmente quando o assunto é a cobertura da imprensa internacional do julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e outros sete réus acusados de tentativa de golpe no Supremo Tribunal Federal (STF), há uma constante comparação entre os acontecimentos dos últimos anos no Brasil e nos Estados Unidos.

Andreza Aruska de Souza Santos
Reprodução/King’s College Andreza Aruska de Souza Santos é diretora do Instituto Brasil da universidade King’s College London

As similaridades apontadas por especialistas e veículos estrangeiros se debruçam especialmente no fato de tanto Bolsonaro quanto o atual presidente americano Donald Trump terem sido acusados de agir para reverter o resultado de uma eleição, divulgar informações falsas sobre fraude e incitar seus apoiadores a invadirem prédios públicos para impedir a posse de seus adversários políticos.

No caso americano, Trump se tornou réu em ações estaduais e federais por suas ações após sua derrota na eleição presidencial de 2020 para o democrata Joe Biden. Mas quando os casos foram abertos, o republicano já se preparava para ser candidato às eleições de 2024, e os processos não chegaram a ser concluídos antes de ele voltar à Casa Branca no início deste ano, após derrotar a democrata Kamala Harris nas urnas.

Já Bolsonaro foi declarado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2023 por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação durante reunião realizada no Palácio da Alvorada com embaixadores estrangeiros em 2022.

No julgamento que deve ser encerrado ainda nesta semana, o ex-presidente brasileiro é acusado de cinco crimes relacionados a um suposto plano de golpe de Estado para impedir Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de assumir o poder após as eleições de 2022.

Entre os crimes imputados ao ex-presidente estão liderança de organização criminosa, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado.

Os dois últimos se referem aos ataques de 8 de janeiro de 2023 contra as sedes dos Três Poderes da República. Na ocasião, milhares de apoiadores radicais de Bolsonaro, insatisfeitos com a eleição e a posse do presidente Lula, invadiram e depredaram o Palácio do Planalto, o Congresso e o STF — em um episódio amplamente comparado ao que aconteceu em 2021, no Capitólio em Washington.

“É como se para entender o Brasil fosse preciso relacionar [os acontecimentos] a algo que as pessoas conhecem — nesse caso aos Estados Unidos, às ações de Donald Trump e à invasão do Capitólio”, diz Andreza de Souza Santos.

“E aí vem a surpresa: ‘Mas como o Brasil conseguiu levar um ex-presidente à corte? (…) Por que no Brasil isso está acontecendo e nos Estados Unidos nada aconteceu?'”.

Estereótipos e falta de conhecimento

Segundo a diretora do Instituto Brasil da universidade King’s College London, a sensação de surpresa diante da força da democracia e das instituições brasileiras está muito ligada aos estereótipos geralmente associados à burocracia da América Latina.

“O Brasil, e a América Latina em geral, não são conhecidos pelos seus aspectos positivos e funcionais, mas pelos seus aspectos disfuncionais, como corrupção e violência”, diz.

“Fora do Brasil, as pessoas não tem conhecimento sobre a qualidade do serviço público brasileiro, a estabilidade financeira e profissional e o nível das pessoas envolvidas nas instituições.”

Andreza de Souza Santos afirma ainda não enxergar uma relação direta entre o estereótipo mantido pelo mundo sobre as instituições brasileiras e o passado do país com um governo autoritário militar, de 1964 a 1985.

“Se essa percepção fosse baseada em uma análise mais histórica, estaríamos em um lugar de mais credibilidade”, avalia. “Uma reação de surpresa não é óbvia para quem conhece a reforma constitucional de 1988 e todo o arcabouço institucional criado para proteger o Estado contra ele mesmo.”

Para a antropóloga, muitas pessoas não entendem, por exemplo, as razões que levaram o atual julgamento ao Supremo Tribunal Federal e os fundamentos da imunidade parlamentar.

O STF é a última instância do Poder Judiciário brasileiro, sendo o órgão de cúpula responsável por ser o guardião da Constituição Federal e dar a palavra final em questões constitucionais. Ainda cabe à Corte os chamados julgamentos por “foro privilegiado”, reservado a altas autoridades.

“Essa blindagem [foro privilegiado] existe justamente para garantir os direitos e liberdades [dos políticos no Brasil]”, diz Souza Santos.

O princípio do foro privilegiado é proteger autoridades — presidentes, ministros e parlamentares, por exemplo — de abusos da Justiça que possam impedir que eles exerçam seus cargos.

Sem o foro privilegiado, em tese, qualquer juiz em primeira instância poderia aceitar uma denúncia contra um presidente — e há mais de 18 mil juízes no Brasil.

O atual julgamento do ex-presidente Bolsonaro pelo STF foi consolidado pela Corte após a mais recente decisão sobre foro privilegiado, de março deste ano.

O Supremo decidiu que “a prerrogativa de foro para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício, com aplicação imediata da nova interpretação aos processos em curso”.

Foram a favor desse entendimento os ministros Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Cristiano Zanin, Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Nunes Marques e Dias Toffoli. Já André Mendonça, Luiz Fux, Edson Fachin e Cármen Lúcia foram contra.

No julgamento desta quarta-feira (10/9), Fux defendeu a anulação do processo por incompetência do Supremo. De acordo com ele, a decisão de março é posterior e, como os réus não têm mais foro privilegiado, não deveriam ser julgados pelo STF.

‘Entre vencedores e perdedores, perdemos todos’

Por outro lado, afirma a especialista, o fato de o Brasil estar nas notícias mais uma vez por conta do julgamento de um ex-presidente não é positivo para a reputação da democracia nacional.

“O atual presidente da República [Lula] estava na cadeia até recentemente e o ex-presidente Jair Bolsonaro está em prisão domiciliar e sendo julgado”, diz Andreza de Souza Santos.

“Ao mesmo tempo em que estamos passando uma mensagem forte sobre a qualidade do Judiciário e das instituições brasileiras, o julgamento de mais um ex-presidente transmite uma mensagem negativa sobre nossa democracia e continuidade política”.

Para a antropóloga, o processo de continuidade política, competição eleitoral e “passagem do bastão” sem perturbações também é importante para a democracia.

“Entre vencedores e perdedores, perdemos todos como nação por conta dessa descontinuidade”, afirma. “É muito positivo que as instituições tenham funcionado, mas ainda somos um país de ciclos eleitorais com desestrutura, com prisão, com muita intervenção do judiciário.”

‘Tática perigosa’

A diretora do Instituto Brasil da universidade King’s College London também avaliou a força do bolsonarismo após as manifestações do último domingo (7/9) em defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro e de uma anistia.

Para Souza Santos, apesar de uma ala mais fiel seguir apoiando Bolsonaro, seu julgamento e prisão preventiva ampliaram a rejeição de alguns eleitores.

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), discursou em ato na Avenida Paulista em defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro
AFP- O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), discursou em ato na Avenida Paulista em defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro

“As manifestações mostram que ainda existe um bloco fiel ao ex-presidente Jair Bolsonaro, mas sabemos que ainda não é um grupo majoritário capaz de eleger o próximo presidente da República”, afirma.

A antropóloga afirma ainda que a associação muito próxima de outros políticos a Bolsonaro pode eventualmente ser prejudicial em uma campanha para as eleições do próximo ano. Souza Santos menciona especialmente o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos).

Tarcísio participou de um protesto na Avenida Paulista no último domingo e defendeu a anistia para o ex-presidente. Ele também subiu o tom contra o Supremo Tribunal Federal, criticando o que chamou de “tirania” do ministro Alexandre de Moraes.

O governador de São Paulo ainda defendeu que Bolsonaro possa disputar as eleições no próximo ano — publicamente, Tarcísio tem reiterado que Bolsonaro deve ser o candidato em 2026, embora nos bastidores ele articule sua própria candidatura.

“É uma tática perigosa, porque ele vai herdar uma porcentagem interessante do eleitorado de Bolsonaro, mas também vai perder uma porcentagem por estar se aliando a um político que tem uma alta rejeição”, diz Andreza Souza Santos.

“A rejeição ao Lula elegeu o Bolsonaro, mas a rejeição ao Bolsonaro também elegeu o Lula. É um lugar perigoso para se estar.”

BBC

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