terça-feira, dezembro 3, 2024
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A outra face da psicopatia, por Kléber Oliveira Veloso

Esse epifenômeno é uma disfunção neurocognitiva grave, fazendo a pessoa se comportar contrariamente aos padrões sociais. É uma variação mórbida da personalidade, uma deformação das qualidades morais do caráter. Esse distúrbio psicoemocional é sinônimo de personalidade antissocial ou dissocial. Sua existência acompanha a humanidade e seu conceito é recente. Ela alcança, em maior ou menor escala, a população mundial na proporção de 4%. Ou seja, uma em cada cem pessoas tem essa neuropatologia. Desse percentual, 1% é do sexo feminino e 3% do sexo oposto, diferença semiológica que necessita ser melhor esclarecida. Essa entidade nosológica é definida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e rotula a Classificação Internacional de Doenças (CID).

O córtex órbito-frontal e o córtex pré-frontal, áreas encefálicas que modulam o juízo moral e o sistema límbico, responsável pela amplitude e adequação das emoções e dos sentimentos, hospedam esse embotamento afetivo-emocional. A deficiência da amígdala cerebelar, órgão mais importante do sistema límbico, ao se comunicar com os hemisférios cerebrais, desencadeia a sociopatia. Ao estabelecer as conexões entre a amígdala e os lobos frontais, por meio dos impulsos eletromagnéticos, ocorre um deficit conectivo e, face à baixa atividade neural nos lobos pela hipofunção da amígdala, elabora-se um comportamento lógico, mas despido de sentimentos. Não há, por esse motivo, uma perfeita sintonia entre as emoções, elaboradas no sistema límbico e a sua razoabilidade, formada nos lobos frontais, área cerebral que rege o comportamento consciente.

Essa síndrome, além de inativar o sistema nervoso simpático, exime o comportamento de constrangimento moral, em nítido contraste àquele aceitável. Face a essa insuficiência neurológica, a pessoa não elabora sentimentos como altruísmo, amor ao próximo, compaixão, culpa, empatia, gratidão, solidariedade ou vergonha e, por isso, não consegue estabelecer relações emocionais com o próximo. Observem, portanto, o que isso quer dizer!

A semiologia dessa entidade nosológica se estabelece pela ausência de um comportamento neurocognitivo pró-social, pois o mecanismo psíquico do seu portador diverge daquele de uma pessoa normal, situando-o à margem do equilíbrio neurocognitivo. O sociopata é incapaz de se emocionar, de aprender com a experiência e de obstar os seus impulsos associais, apesar de essas conformações variarem entre os seus portadores, pois lhe falta o julgamento ético. Ele não processa os estímulos sentimentais e, por isso, não se emaranha num legado transpessoal. É, portanto, imperturbável e indiferente às emoções alheias face ao seu embotamento psicoemocional.

Essa disfunção neurocognitiva provoca um egocentrismo patológico no seu portador, fazendo-o buscar a satisfação dos seus interesses sórdidos. O psicopata se encontra em todas as camadas sociais. Constitui família e, não raras vezes, desfruta de significativos atributos pessoais. Ele tem consciência das suas capacidades e da vulnerabilidade emocional de suas vítimas, por isso as manipula para delas se aproveitar. Utiliza-se dos seus predicados para ludibriá-las, conjugando, por exemplo, dotes intelectuais, profissionais ou artísticos, com um desequilíbrio real de afetividade.

Por isso, o sociopata é incapaz de se colocar no lugar do outro, de sentir afeto e emoção, de modo que o sofrimento alheio não lhe diz respeito. Por causa dessa dinâmica neurocognitiva, ele não relaciona as suas palavras às suas emoções. Daí a impossibilidade de o psicopata se deprimir ou possuir baixa auto-estima. Ele fala qualquer coisa, envolve pessoas, mas permanece alheio àquelas emoções provocadas nos outros.

Investigações etiopatogênicas mostram que os sintomas dessa psicopatologia se manifestam ao longo da vida pessoal. Eles se iniciam na infância, tonificam-se na adolescência e perpassam a vida adulta. O distúrbio pode ser abúlico, amoral, astênico, compulsivo, delinquente, explosivo, fanático, hipocondríaco, histérico, inadaptável, inseguro, ostensivo, sexual, dentre outros. Os perfis leve e moderado de gravidade do distúrbio, se identificados precocemente, podem ter o seu avanço impedido por meio de regras educacionais e religiosas, podendo ou não a modulá-los. O perfil severo é incorrigível e, se a pessoa tiver traços perversos e indômitos, pode evoluir para o canibalismo, dentre outras degenerescências.

Na infância, essa neuropatogia se manifesta por meio de alterações comportamentais perceptíveis: afeição a brigas, às intimidações, às humilhações e à violência física contra amigos e a pequenos animais; assédio psicológico; caráter dissimulado; desrespeito à autoridade dos pais e dos professores; desapego aos sentimentos familiares; fácil colerização; fúria incontrolável; imediatismo; indisciplina; mentiras contumazes; raivas gratuitas; reduzida tolerância à frustração; trapaças para obter vantagens em jogos pueris, dentre outras.

A adolescência é o estágio em que esse desequilíbrio psicoemocional mais se evidencia. Potencializa-se pelos seguintes comportamentos: abandono frequente do lar; ausência de remorso por um erro praticado contra alguém e de empatia com os sentimentos alheios; baixo controle da impulsividade; comportamento fantasioso, buscando adaptar a realidade à imaginação; exacerbado zelo com os interesses pessoais e nenhum com os alheios; fascínio pelo poder, daí a busca por profissões que “trazem” autoridade; incapacidade de elaborar sentimentos nobres; iniciação ao uso das drogas; insensibilidade emocional; megalomania; mitomania; prática de atos de vandalismo; procura de excitação; propensão a falecer prematuramente por meios violentos; rebeldia; sexualidade exaltada; trapaças pelo prazer, para citar alguns.

Esse embotamento psíquico, no adulto, mantém uma cadência comportamental, sendo: agressões diversas; ausência de alucinações, de ansiedade, de baixa auto-estima, de delírios, de depressão, de neuroses, de sentimentos éticos e altruístas; chantagem emocional; desembaraço comportamental; dificuldades conjugais face à promiscuidade sexual; dificuldade para construir e manter amizades; estilo de vida parasita; frieza e calculismo ao se comportar; incapacidade de se responsabilizar por suas ações, em especial pelos compromissos financeiros e morais; inconstância nos empregos; loquacidade; manipulação de estados mentais alheios para alcançar o que se deseja; obsessão pelas mais variadas fantasias; prática de crimes bárbaros; quando pais, eles utilizam os filhos para alcançar seus objetivos, não lhes respeitando as escolhas; reduzida intuição; violência doméstica; voz monocórdica; vivência isolada e, quando realizada em grupo, procura lhe exercer o domínio.

O Direito brasileiro não considera esse distúrbio uma doença para os fins de exculpar o seu portador. Se o psicopata cometer ilícito, civil ou penal, será responsabilizado. Ele tem a capacidade de entender – libertas intellectus – e a de se determinar – libertas propositi – sobre o ato que pratica, apesar de não se autodeterminar com relação às emoções face aos deficits neurocognitivos existentes no lobo frontal. Tem, portanto, hígida a sua curvatura cognitiva e a exata consciência do seu comportamento anormal, não apresentando deficiência algorítmica. Em função dessa desorganização afetivo-emocional, ele tem a sua própria lógica, “definindo” o que é lei, o certo e o errado, no seu mundo distorcido. Ele consegue maquiar a sua índole infratora.

Cesare Lombroso (1835-1909), estudando antropologia criminal, etiquetou essa neuropatologia como oriunda de um determinismo biológico. Brilhantemente, em parte, acertou! Nessa linha de raciocínio, indaga-se: a pessoa nasce criminosa? Sim, o psicopata é o exemplo e, ao mesmo tempo, a exceção. Seguramente, alguns crimes violentos são praticados por ele, como: brutalidade sexual, corrupção, crueldade, depravação, homicídios em escala (atos praticados pelos serial killers), latrocínio, liderança de crimes organizados, rituais de sadismo, sequestros, terrorismo, torturas, tráfico e vício em drogas, além de muitos outros. Os serial killers, particularmente, são criminosos capazes de atos brutais, de mutilações e de pura maldade, enfim, de atos incompreensíveis. Em busca do seu objetivo mórbido, às vezes com carisma e charme fatais, têm a necessidade incontrolável de matar, além de sentirem prazer com o sofrimento da vítima. Os seus cérebros não têm respostas emocionais, pois é reduzida a atividade neural no córtex pré-frontal. Além da ausência das emoções primárias (amor ao próximo, empatia e piedade), não possuem emoções secundárias (ansiedade, alterações do ritmo cardíaco, calafrios, medo, respiração ofegante e transpiração alterada), face à inativação do sistema nervoso simpático. Nem todos os psicopatas são criminosos e a recíproca é verdadeira. A maioria deles não é violenta e se comporta dentro de padrões estreitos de tolerabilidade face às trágicas consequências psicológicas e financeiras provocadas nas suas vítimas.

Na senda criminal não há alcance psicológico se o sociopata for apenado. Ele não possui conexões cerebrais necessárias para associar a reprimenda que cumprir à eliminação do comportamento ilícito, apesar de dimensionar, subjetivamente, o dolo e a culpa. Noutra verve, ele sabe que o seu comportamento é errado, mas, face à baixa atividade neural nos lobos frontais, ele não consegue atingir um significado mais profundo de seu comportamento ilícito. Por causa dessa síndrome ele é incapaz de aprender, de se intimidar e de modificar a sua atitude com a pena que cumprir! Daí as reincidências criminais. Na esfera cível, de igual modo, não há resultado efetivo e, condenado a indenizar a vítima, ele continuará agindo pernosticamente face à sua insuficiência afetivo-emocional.

Como a arqueologia do saber envolve multifacetários vieses, estudos filogenéticos do distúrbio, aliados aos recentes avanços de investigação neurológica, por meio de imagens por ressonância nuclear magnética funcional (IRMf), têm permitido melhor análise da fisiologia cerebral. O IRMf atua medindo as oscilações do  fluxo sanguíneo cerebral, obtendo imagens com alta resolução espacial e temporal. Esse instrumento consegue, em tempo real, precisar o nível de conexão ou de repulsão emocional da pessoa perante um estímulo visual. Um exemplo interessante e atual da performance do IRMf é o detector de  mentiras. Como mentir exige esforço cerebral, esse esforço provoca um aumento do fluxo sanguíneo em determinada área cerebral e, por isso, é denunciado pelo IRMf. Essa circunstância mostra que a pessoa submetida ao IRMf está mentindo! Ou seja, ele registra e quantifica a atividade cerebral, da cognição ao comportamento.

Com ele, pode-se examinar o campo magnético do tecido neural ao rastrear as ondas cerebrais em tempo real, gerando imagens em qualquer plano. Assim, foi possível mapear, topograficamente, os cérebros de alguns psicopatas. Descobriu-se que eles têm menor atividade cerebral nas áreas envolvidas no julgamento moral, possuindo alterações homeopáticas na sua arquitetura cerebral. Além da constatação dessas discrepâncias morfológicas, localizaram-se as regiões onde residem as deficiências. Essas notáveis descobertas permitem intervenções farmacológicas para atenuar, modular ou eliminar o distúrbio. Possibilitam, ainda, estimular as regiões cerebrais específicas para se alterar comportamentos, face à neuroplasticidade cerebral. É possível, também, microcirurgias neurofrontotalâmicas. As tentativas de tratamento – e aqui se incluem as terapias – nem sempre potencializam efeitos concretos, pois os sociopatas não lhes são responsivos.

Pesquisas pós-modernas sugerem multideterminados e importantes fatores responsáveis por esse embotamento psicoemocional. Dentre eles se destacam os sociais (extrínsecos – maus tratos na infância, traumatismo cranioencefálico). Sabe-se, também, que lesões no lobo frontal podem apagar as conexões cerebrais que definem os comportamentos coerentes, provocando perda do auto-controle, impulsividade e violência. Destacam-se, ainda, os fatores biológicos (intrínsecos – causas psicogênicas, doenças mentais, forças neurobiológicas, do amor ao vício, tumores cerebrais) e os fatores genéticos (genótipo). Estes fatores, isolados ou em conjunto, e aqui se inclui o poliformismo (variação fenotípica num grupo, seja ou não com fundo genético), provocam alterações na capacidade de julgamento da pessoa. Os fatores genéticos, entretanto, prevalecem sobre os epigenéticos, pois se vinculam à manutenção do código vital pela transmissão bioquímica dos caracteres hereditários, de modo que filhos de psicopatas têm cinco vezes mais chances de desenvolver o mesmo distúrbio. Apesar disso, a etiologia desse distúrbio neurocognitivo merece esclarecimentos, mesmo em se tratando de uma referência nosológica que sempre interessou aos neurocientistas.

O Brasil, na contramão de países mais bem sedimentados culturalmente, ainda não elaborou procedimentos capazes de identificar os portadores dessa síndrome e ajudá-los por intermédio de um planejamento institucional, inclusive de lhes obstar o ingresso em determinadas profissões. Esse embotamento neurocognitivo é complexo e muito mais grave do que se imagina, pois, além do rastro de destruição e desalento deixado por seus portadores, é crescente em todos os tecidos sociais.

Eis aí outro desafio a ser ultrapassado pelas ciências!

KLÉBER OLIVEIRA VELOSO

* Pós-doutor em Direito Penal pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil. Doutor e Mestre em Direito Penal pela Universidade de Barcelona, Espanha. Especialista em Direito Penal e em Direito Processual Penal pela Universidade Federal de Goiás (UFGO), Brasil. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), Goiânia, Brasil. Diretor Editorial da Revista Odisseia da Medicina. Membro das Comissões do MEC/SESu/INEP para avaliação, autorização, supervisão, credenciamento e reconhecimento dos cursos de graduação e de pós-graduação em Direito, Brasil. Membro Fundador da Academia Goianiense de Letras. Escritor. Professor.

 

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